Opinião: A Cicatriz do Mal de Pierre Lemaitre





 


Galerie Monier, Paris.

Uma mulher é apanhada de surpresa por três homens armados que assaltam uma joalharia em plena galeria de lojas dos Campos Elísios.

A mulher chama-se Anne Forestier. Trata-se nada mais nada menos do que a companheira do comissário Camille Verhœven, responsável pela Brigada Criminal. Fazendo tábua rasa da lei e correndo o risco de perder o posto de trabalho, o comissário esconde dos demais polícias o facto de conhecer Anne e toma a investigação a seu cargo. É o primeiro passo de uma manipulação orquestrada por um assassino vingativo. Na realidade, quem dá caça a quem? E quem é a verdadeira presa?

Gravemente ferida e coberta de cicatrizes, Anne fica internada no hospital, até que Camille a esconde na casa isolada que herdou da mãe. Perseguida por um dos atacantes, esta misteriosa mulher manterá o comissário na corda bamba, tanto a nível pessoal como profissional. Digno herdeiro de Sherlock Holmes e Hercule Poirot, com uma costela de Philip Marlowe, o comandante é um mestre na arte de bem investigar, mas este caso revela-se uma manipulação com requintes de vingança pessoal.


Como habitualmente acontece na escrita de Lemaitre, as aparências enganam, e Camille acabará por compreender que é vítima de uma intriga que remonta ao passado, vendo-se obrigado a recorrer a todos os expedientes e mais algum para descobrir o responsável, bem como as razões que motivam o enigmático assassino.





Anne, companheira de Camille, é uma vítima acidental de um violento assalto. O inspector não olhará a meios para apanhar o responsável, pondo mesmo a carreira em risco! A investigação leva-o a um astuto criminoso movido por uma vontade de ferro. Estará Camille à altura? Terá este caso ultrapassado a sua capacidade de discernimento?

O "Mestre" Pierre Lemaitre é para mim uma referência no que a boa escrita diz respeito! É um dos poucos autores que conheço em que de imediato consigo percepcionar uma fluidez criativa, natural e impar no processo da escrita (literalmente falando)!

Deixem-me colocar as coisas de outra forma, imaginem o desportista dotado que faz umas habilidades na cidade natal movido por um prazer narcisista e a quem antevemos facilmente um futuro brilhante se se dedicar. Depois imaginem um segundo que além de dotes naturais junta também uma grande técnica e um rigor a toda a prova, que trabalha arduamente e arrecada prémios em todas as competições. E por fim imaginem um terceiro que com aparente desprendimento, de uma forma natural e sem grande esforço sobressai sobre o segundo e nos leva a desprendermo-nos da mecânica do desporto e convecções inerentes, e simplesmente nos permite apreciar e deliciarmo-nos com a oportunidade de partilharmos daquele momento. É neste último grupo que enquadro o autor.

O enredo é passado em apenas 3 dias! Um luta constante contra o tempo. A história encerra um conjunto de eventos, que confesso que a dada altura me questionei como o autor ia conseguir apresentar o desfecho de uma forma coerente e verosímil! Mas, como tem sido recorrente, o autor é um manipulador astuto e o desfecho acaba por ser bem conseguido deixando apenas o suficiente em aberto para desejarmos ler o próximo de imediato.

A leitura quer-se atenta, porque é frequente uma transição de perspectiva, recorrentemente sem grandes preâmbulos passamos do narrador para Camille ou para outra qualquer personagem! 
Outras vezes damos por nós a ser chamados para um diálogo com o próprio narrador! A partilhar desabafos como se tratasse de dois velhos amigos que bebem um copo no fim do dia exorcizando os males do mundo. 

« Os assassinos são como o leitor e eu.» «O género de mulher que pode apunhalar o leitor pelas costas sem a mínima hesitação»
 
Pode parecer estranho mas na minha opinião enriquece o enredo. O assumir da nossa perspectiva por parte do narrador, trás uma proximidade ao leitor levando-o a questionar a intencionalidade dos argumentos apresentados.

Pierre tem uma postura provocadora transversal nos três livros que li dele!

Eu explico ... 

Primeiro no grafismo literário empregue quando descritas as situações de violência ou efeitos das mesmas, é de tal forma intenso e realista que arrepia a pele ao ler essas passagens. 

«corpo (...) arrastado pela álea e jacente num charco de sangue». 

Não há paninhos quentes, há sim uma crua descrição com um primor requintado. Há também da parte do autor uma soberba, que não deve ser confundida com arrogância mas antes com um orgulho e segurança na forma como escreve.
Por último (para não me alongar), há um constante desafio ao leitor, ora o idolatra presenteando-o com uma proza unica variada, ora o testa!

(Para exemplificar o que digo eis o meu comentário durante a leitura do livro no goodreads):
 
"Permitam-me achar este autor impar, de uma arguta e sofisticada prosa. Pródigo em vocábulos que me atiçam e me esboçam um sorriso nos lábios. É certo que se está a meter comigo, não tenho a menor dúvida! No meio de uma frase despeja 1 ou 2 palavras e com requinte deixa no ar a questão ... Percebeste?: 

«gosta da resistência, o doutor Dainville, é acrimonioso, altaneiro, indelicado, mas gosta das complicações. Agressivo, belicoso (...)» Pag 128"

Quanto à sua prosa literária, é de facto peculiar. Não consigo deixar de ficar rendido a uma tão evocativa e natural escrita.

Neste livro o autor trabalhou 4 conceitos interessantes: a descrença, o inconformismo, a inevitabilidade e o ocaso, não necessariamente por esta ordem. E usa-os para uma vez mais manipular a percepção do leitor.

A história é interessante, mas devo confessar que na minha opinião, neste livro a escrita do autor sobressaí perante a própria história.

A ler ...




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