Close up interviews com Derek B Miller



Num registo intimo e bem disposto, Derek B Miller concedeu-nos uma entrevista única permitindo uma proximidade invulgar com o autor. Derek falou-nos do seu livro, da sua escrita, da sua familia e de si mesmo. É também com o autor que iniciamos este novo projecto "Close Up Interviews" com o propósito de oferecer aos nossos leitores conteúdos únicos, de qualidade, tendo por base um trabalho prévio de pesquisa. (brevemente: versão inglesa)




Livros e Marcadores (LM): Parabéns, antes que tudo, pelo seu livro. Sheldon é uma personagem impressionante, marcou-me profundamente. O que gostei mais nele foi o humor e a sua peculiar perspectiva da vida.  Sheldon lembra-me o meu avô, a sua convicção, a sua força de vontade e a sua experiência de vida.

Este tipo de ligação afectiva com o leitor era um dos objectivos quando escreveu o livro?

Como o conseguiu? Foi algo natural? Ou foi algo que implicou um trabalho árduo para alcançar?




Derek B Miller (DBM): Uma experiência inesperada neste romance foi constatar como tanta gente encontra pontos comuns entre  Sheldon e os seus pais ou avós. Tenho recebido comentários como este de lugares tão geográfica e culturalmente diferentes como Samoa, Tasmânia, Portland Maine, New York e Lisboa, para citar alguns.

Isto pode soar paradoxal: acho que a universalidade do Sheldon vem de explorar e ser fiel ao que faz dele um indivíduo. Eu concentrei-me - directamente, de forma explícita e intencional - sobre um judeu americano daquela geração, daquela parte do país, com aquele sentido de identidade e tipo de carácter. Estas pessoas são reais. Elas existiram. Eu acho que tudo que Sheldon fez neste livro é verosímil. Louco, talvez. Mas realista.

Como escritor, eu queria ser fiel a uma "voz". Como indivíduos, nós somos moldados (e ajudamos a moldar) o mundo sócio-cultural do qual fazemos parte. O universo de Sheldon foi um dos que foi influênciado em parte por uma atitude pós-guerra e uma postura perante a vida que eu acho que foi amplamente partilhada ou que, pelo menos, é familiar a muitas pessoas. E depois havia a idade, interiorizei a idade de Sheldon, explorei os pensamentos e sentimentos de um homem de oitenta e dois anos (para melhor os poder entender). As pessoas que têm a mesma idade conseguem rever-se em Sheldon 

 
Essa pessoas estão a aproximar-se do fim da vida e a forma como lidamos e aceitamos esse facto ajuda a
definir-nos. Isso fez com que a história de Sheldon fosse universal.

Quanto ao que é natural e o que é deliberado, tudo que eu posso dizer é que agir deliberadamente é o que é natural, porque tenho trabalhado nisto durante muito tempo e esse esforço incansável tornou-se agora em algo natural.




(LM): O humor faz parte da sua vida? O que o faz rir?
 


(DBM):  Eu nunca analisei o meu próprio sentido de humor e suspeito que não seja uma coisa que me preocupe. Pode ser que a vida deva ser constantemente analisada, mas acho que o sentido de humor descontraído é o mais feliz de todos. Se te agrada ris, e depois há também o simples prazer de rir. O humor inteligente é maravilhoso, mas se for crítico pode torná-lo aborrecido.

Sem um sentido de humor, não vejo como é possível alguém funcionar neste planeta. Humor é a capacidade para experimentar algo de pelo menos duas perspectivas e ouvir (e apreciar) a interacção entre essas perspectivas.



Precisamos saber o que é a normalidade e o que se espera dela para saber quando a mesma está a ser posta em causa e qual o significado disso. No dia em que perdermos o nosso sentido de humor perdemos o conceito de normalidade, porque esse espaço desmoronou. É por isso que o raciocínio " Isto é suposto acontecer?" é interessante: ele salva-nos. Ele reinventa-se e adapta-se. Isso dá-nos espaço para respirar quando tudo o resto é perdido e a loucura se torna a nova normalidade. Esta é a essência também, tal como eu a vejo, do humor judaico. Paramos e equacionamos - mesmo a partir de um ato de Deus, como a destruição de Sodoma e Gomorra* - e dizemos: "Desculpa perguntar, mas tem mesmo a certeza disto?"

Esse espaço é a nossa humanidade. O nosso sentido analítico, moral e criativo usados ao mesmo tempo. Isto é o que recebemos e o que oferecemos.

Então, sim, o humor torna-se uma grande parte da minha vida. Duvido que tivesse consciência da vida sem ele.

* Sodoma e Gomorra são, de acordo com a Bíblia judaica, duas cidades que teriam sido destruídas por Deus com fogo e enxofre descido do céu. Segundo o relato bíblico, as cidades e os seus habitantes foram destruídos por Deus devido a prática de actos imorais. (Wikipedia)





(LM): O seu filho nasceu em 2008, tal como o meu. E eu sei, por experiência própria, que são tempos conturbados. Como conseguiu gerir esta realidade de forma a escrever um extraordinário livro em apenas 8 meses? Qual o grande segredo?



(DBM): O grande segredo para eu escrever um romance entre o nascimento do meu filho e Ano Novo, em 2008, foi a minha esposa. Eu sou um pai muito presente e adoro isso, mas durante os primeiros seis meses, ou mais, a função do pai é a de um mero transportador e trocador de fraldas. Assim, entre as 06:00 e o meio-dia de cada fim de semana, eu era irrelevante para a vida do meu filho. E durante esse tempo, eu escrevia.

Enquanto Camilla cuidava de Julian eu sentava-me  na mesa da cozinha no meu próprio mundo - o mundo que agora posso partilhar através deste livro. Eu já escrevia há algum tempo, estava muito motivado para escrever este livro e a escrita estava a fluir naturalmente como nunca antes. Essa clareza de espirito e a “voz” fizeram-me avançar. Eu ansiava pelos fins de semana para retomar o trabalho.



(LM): Quanto há de si em Sheldon. Partilha a mesma perspectiva de vida de Sheldon?

(DBM):  Esta é uma espécie de pergunta sem resposta. Sheldon é um produto de uma grande quantidade de vida, baseada na vida de muitas pessoas, passando por mim como pessoa e, em seguida, como escritor. Eu faço a distinção entre as duas coisas, porque as minhas competências como escritor podem ser mais limitadas do que as minhas competências como pessoa.

Mas julgo que sim, de qualquer forma. Este acto de criação e a tentativa de representação fidedigna da personagem torna a nossa relação “artística”.



(LM): Descreva-nos a nossa rotina de escrita.


«Tenho uma rotina ideal e tenho uma rotina real. »

(DBM):  Tenho uma rotina ideal e tenho uma rotina real.

Na rotina ideal acordo por volta das 06h30. Tomo banho, visto-me, como e tomo um café, como se estivesse a ir para um trabalho normal. Sento-me no meu escritório, na cave, e verifico brevemente os e-mails, certifico-me que não está a decorrer nenhuma guerra nuclear que tenha que tomar conhecimento, e então mergulho na escrita.

Troquei o processador de texto para o Byword para escrever porque desisti do Word. Escrevo usando o estilo invertido - letras brancas e fundo preto, “full screen”. Não há outras imagens, nenhum e-mail, nem janelas.

Então escrevo das 8h00 horas até às 13h00. Aconteça o que acontecer acontece, mas como diz Nora Roberts (uma das escritoras mais prolíficas do mundo), a única regra é "rabo na cadeira”. Após isto, corro 10 km, se a temperatura estiver entre 30º C e -12º C . Não tenho grande tolerância para o calor, acima desses valores, e abaixo, tenho frio. Detesto exercício dentro de portas, e estou disposto a aceitar esse intervalo de temperatura, desde que não seja muito escorregadio.

As minhas manhãs são intensas enquanto que meus fins de tarde são abertos a novos estímulos. Posso ler ou ver TV e de repente surge uma ideia e regresso rapidamente ao trabalho até este estar concluído. Eu não escrevo à noite. Sou o oposto de Michael Chabon nessa parte. Também não sou uma “pessoa da manhã”, por si só, mas a fadiga do despertar fomenta a minha criatividade.

Esta rotina ideal raramente acontece. Tenho dois filhos, um de três anos e outro de seis, uma esposa, um outro trabalho muito exigente e um gato que julga que é um cão. Isso significa que faço o que posso quando posso, e o melhor que posso e depois espero que isso seja o melhor. Talvez isso mude. Rotina não é um termo significativo nestas circunstâncias. É mais uma condição.



(LM): Planei-a os seus livros antecipadamente ou deixa-se ir?


(DBM):  Eu acho que isso é uma falsa dicotomia perpetuada por autores que querem parecer mais atractivos do que realmente são, e parte disso é o resultado de não entender realmente o que se está a fazer (ou seja, eles podem escrever, mas não conseguem fazer a necessária analise critica, porque não é isso que a escrita nos ensina a fazer).

Em minha opinião, a criação de qualquer a história é um processo abdutivo e interativo. O que significa que a determinação do que é a história - a sequência dos actos, o drama, o significado, a inter-relação entre as partes - acontece através da criação, e, em seguida, através da reflecção sobre essa primeira criação para tomar decisões que por sua vez geram mais criação. É um processo de diálogo consigo próprio constante. O escritor deve - em prol do processo de abductivo jogar com avanços e recuos para que se possa aproveitar a escrita intuitiva e da sua análise critica.

Richard Ford disse que primeiro escreve-se intuitivamente, e depois rescreve-se. Isso é maioritariamente verdade. Na realidade, acho eu, nós escrevemos utilizando ambas as formas, muito mais regularmente e com muito mais frequência do que se imagina. Aqueles que são muito experientes - como Ford - podem fazer isto inconscientemente, porque eles dominam a arte da escrita. Os novos escritores preocupam-se mais com isso porque a perícia ainda está a ser desenvolvida. Têm que se passar por todas as fases de aprendizagem para alcançar o domínio e as aptidões necessárias. É por isso que o velho ditado de que os escritores devem estar continuamente a escrever é uma boa dica. Essa é a única forma de aprender. É como dominar o uso de um instrumento antes de tentar criar arte com ele.

É, aliás, uma forma profundamente antinatural de pensar. Aqueles que gostam da sua lógica linear não são susceptíveis de estar emocionalmente à vontade na criação de uma história, porque requer um compromisso constante com perguntas como: "o que transmite esta observação, qual o seu significado na história?" Requer respostas constantes para, "por que eu estou a dizer isto ao leitor?", “o que acresce/oferece à narração?" Este questionamento é constante e exaustivo. E tudo parece ser uma enorme e uma assustadora confusão até o deixar de o ser. Este processo deixa algumas pessoas malucas.

Em minha opinião, aqueles que dizem que fazem toda a trama antecipadamente estão negligenciar a nuance da sua própria realidade, a menos que eles realmente não saibam o que estão a escrever e não se deixem influenciar por o que escreveram. Suponho que isso é possível, mas é um mistério para mim se isso acontece, eu não gostaria de ler ficção escrita dessa forma. Aqueles que dizem que não antecipam e deixam fluir são aqueles que querem romantizar o processo criativo e minimizar o facto analítico dele.

Afinal, no imaginário popular, ser criativo é sexy e ser analítico não o é. Criatividade é supostamente baseada no talento pessoal que não pode ser explicada e reforça a nossa humanidade única - e, dai, o nosso desejo de o ser – o facto de poder ser ensinado e isso ser exteriorizado tornaria as pessoas menos especiais.



Acontece que eu acho que isso é totalmente falso e assim deixa-se de valorizar o processo criativo do raciocínio científico, mas o mito é perpetuado por escritores, porque ou é auto-serviço ou auto-ilusão.




«Há uma lógica para isso, há intenção, há uma forma de raciocínio. Mas sim ... também é algo mágico. »


Um livro sério escrito de uma forma auto-consciente, deve conter a sua própria estrutura deliberada e forma retórica, e trabalhá-las de uma forma positiva. Ao fazer isso esta aptidão é absorvida naturalmente pelo escritor (tal como um músico pode instintivamente improvisar um solo depois de anos de prática), mas esta é uma característica do domínio da arte, e não o resultado de uma personalidade criativa.


Só mais uma coisa: Alguns projectos necessitam que saibas as respostas antecipadamente, no inicio da história, os mistérios exigem isso. Outros projectos não, podes escrever um romance sem saber como vai terminar e simplesmente permitir que a força das personagens determine o melhor caminho para  a história evoluir.

Tudo isto para dizer que o processo de escrita não é baseado numa especifica personalidade ou carácter. Há uma lógica para isso, há intenção, há uma forma de raciocínio. Mas sim ... também é algo mágico.
 
 
(LM): O que poderemos ver no seu lugar de trabalho? Coisas banais ou existe algo distintivo/diferente?


(DBM):  Actualmente escrevo na minha cave num ambiente muito espartano. Acho que a última coisa que um bom escritor precisa é da inspiração (distracção) de uma janela com vista para Veneza?



Além dos padrões muito elevados que se estabelecem (porque pensando bem, quem precisa desse tipo de pressão?), se se estiver concentrado a escrever comédia de ficção científica, nesse caso, qual a importância da visualização da “Ponte Vecchio”*?

Stephen King, com razão, disse que o escritor precisa de um "lugar muito comum" e para mim isso é um lugar que nos permite olhar para além dos nossos próprios horizontes. É esse o caminho para enriquecer a alma e que infunde a escrita com novas possibilidades.




«Stephen King, com razão, disse que o escritor precisa de um "lugar muito comum"»
  

Algo fora de comum …. eu tenho a minha guitarra sempre por perto para quando preciso de uma pausa. Não toco muito bem, mas tenho ritmo e isso ajuda a mudar o meu estado de espírito o que por vezes pode ser muito útil. Embora não ache que a guitarra seja algo distintivo.



*«A Ponte Vecchio (Ponte Velha) é uma Ponte em arco medieval sobre o Rio Arno, em Florença, na Itália, famosa por ter uma quantidade de lojas (principalmente ourivesarias e joalharias) ao longo de todo o tabuleiro» (Wikipedia)


(LM): Qual o próximo projecto?


(DBM):  Estou a trabalhar em dois manuscritos, na verdade, ainda não decidi qual dos dois vai ser o meu segundo romance, por isso prefiro não adiantar nada . Mas posso dizer que se gostaram do primeiro o segundo estará na mesma linha.
 

(LM): Diga-nos algo sobre si, algo que seja desconhecido e surpreendente.


(DBM):  Não tenho a menor ideia.


(LM): Tem alguma história engraçada relacionada com algum dos eventos/tour de promoção do livro que nos possa contar?


(DBM):  Nunca estive em nenhum tour de promoção do livro, e estive em poucos eventos. Por isso infelizmente não tenho nenhuma história que possa partilhar.



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Sobre o autor:
Derek B. Miller é o diretor do Policy Lab, um instituto internacional de "design político" que se dedica a ajudar organizações a conseguirem um maior impacto social através do design. É também membro do Instituto das Nações Unidas de Pesquisa para o Desarmamento, onde trabalhou durante cerca de dez anos.
Formação
Doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra, concluiu um mestrado em Estudos sobre Segurança Nacional na Universidade de Georgetown. 

Residência
Vive em Oslo, com a mulher e os dois filhos.

Um estranho lugar para morrer, o seu romance de estreia, tornou-se um bestseller internacional e foi publicado em doze países.

Video promocional das entrevistas Close Up


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